Irrecuperável
Valdirene Daufemback
Psicóloga, mestre em Psicologia, doutoranda em Direito, integrante do colegiado do Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz, vice-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
Pessoas irrecuperáveis? Não me parece que essa seja a melhor forma de defini-las. Para dizer que algo é irrecuperável, talvez pudéssemos atribuir esse adjetivo ao sistema político, ao sistema econômico ou às elites que, respectivamente, deixam os interesses coletivos para contemplar os particulares, que produzem tantas riquezas para dividi-las tão desigualmente, que arrogam a si as definições do que é bom, belo e justo e querem impô-las aos outros. Mas nada disso é irrecuperável; se foi construído, pode ser refeito.
E se, por um exercício momentâneo, fosse aceitável dizer que as pessoas são irrecuperáveis, se admitíssemos como verdade a seguinte sentença: “Fulano, preso em prisão X, condenado há 12 anos, é irrecuperável”? Seria necessário questionar: recuperar-se para quê? Com quais perspectivas? Para passar por privações, violências, humilhações? Para almejar consumir coisas mostradas pela mídia sem ter a menor chance de adquiri-las? Para ser invisibilizado por uma estatística: “mais uma morte violenta no bairro X, agora já são 75 homicídios neste ano”? Bem, talvez estejamos sendo pouco razoáveis ou com argumentos contraditórios ao aspirar que os pobres das prisões brasileiras queiram se “recuperar” para continuar vivendo numa realidade na qual quem atesta a irrecuperabilidade também não desejaria estar.
Porém, se esse “irrecuperável” quer dizer que “Fulano já não tem mais laços familiares preservados; que está em idade profissional ativa, mas não tem qualificação nem experiência que o habilite a concorrer no selvagem mercado de trabalho; que é dependente químico e precisa de acompanhamento para evitar recaídas; e que irá cumprir um longo tempo em regime fechado, o que irá agravar o seu deslocamento diante do que é esperado do seu comportamento na sociedade livre”, nesse caso é possível entender isso como “essa pessoa dará muito trabalho para ter condições dignas de vida e para ser um cidadão”. E, alguns poderiam afirmar, “é caso perdido, alguns vão ficar de fora da sociedade mesmo” (desde que não seja eu!).
Para essa linha de argumentação, é possível contrapor: como se chegou a tal contexto de existência? Será que a sociedade nada tem a ver com isso? Será que as próprias ações do sistema penal não agravaram e agravarão essa trajetória humana? E, por fim, é só a vida de Fulano que é complexa, em que algo dá errado, que exige esforço de reparação e construção constante? A vida dos profissionais que emitem esses diagnósticos é “limpinha e organizada” e não demanda investimento e cuidado persistente?
No entanto, é possível ainda que “irrecuperável” queira expor algo como “Fulano apresenta perda parcial da integração entre memórias do passado, consciência da identidade, sensações imediatas e controle dos movimentos corporais, associado a um comportamento irresponsável, explorador e insensível”. Um quadro como esse pode demandar tratamento psicoterapêutico e medicamentoso, identificação dos pontos de conexão desse sujeito consigo e com o meio, investimento nesses pontos e no seu laço com a sociedade e monitoramento psicossocial. E ainda muitas outras ações que uma análise do caso em particular pode ponderar. Ou seja, há muito que fazer, portanto irrecuperável não é a melhor palavra porque sugere estagnação, congelamento, trabalho sem retorno ou que nada pode mudar.
E, por último, daria para dizer que alguém é “irrecuperável” porque “nessa instituição, com esses recursos e com esse método não é possível viabilizar que Fulano comprometa-se com novas propostas de vida”. Com essa conotação estamos admitindo a limitação de um espaço funcional e não de uma pessoa. Mais uma vez, nossa atenção deveria estar voltada para mais aspectos, e não apenas para o indivíduo que, na maioria dos casos, é apenas o final da linha de um sistema que precisa mudar.
Assim, se utilizamos a palavra “irrecuperável”, é preciso perguntar “por quê”, “para quê” e “para quem”. Essa palavra não é algo em estado natural, é um veredicto diante de um contexto. Na maioria das vezes, usar a palavra “irrecuperável” para pessoas revela muito mais sobre quem as usa – seu sistema de crenças, sua visão de mundo, seus conhecimentos e seu trabalho – do que de fato traz informações sobre as pessoas que pretende avaliar.