Carta Aberta
Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Braz em apoio à luta contra o encarceramento em massa em Joinville e no Brasil
É função do Estado garantir as condições para a manutenção da dignidade humana! Para tanto, os direitos fundamentais, como saúde, educação, moradia, trabalho e vida plena, enfim, os direitos humanos, devem ser preservados, reafirmados e promovidos.
Instituições que lutam por uma sociedade mais justa, igualitária e ética se desenvolvem justamente como resposta à violação destes direitos, em geral, são movimentos sociais, organizações não governamentais, coletivos de “minorias” excluídas e cotidianamente massacradas pela invisibilidade decorrente da falta de políticas públicas, ou, pela criminalização promovida por uma cultura de valores invertidos.
Porém, as vezes essa luta encontra um outro ponto de apoio. Em momentos raros, uma única pessoa consegue se destacar promovendo um salto qualitativo que se contrapõe ao quadro instalado de violações de direitos. Nestes momentos, toda a construção da cultura e da política excludentes é confrontada por uma pessoa que, armada com a razão, a justiça e o bom senso, desmonta sistematicamente nossos preconceitos e nosso individualismo. Hoje, essa pessoa é o Dr. João Marcos Buch, que de Joinville para todo o Brasil, no exercício de sua profissão como juiz de direito tem travado uma verdadeira batalha denunciando a imoralidade das práticas prisionais em nosso país. Suas condutas, destoam da média e elevam ao mais alto grau da ética e do respeito aos direitos humanos o oficio do magistrado. Temos testemunhado suas constantes incursões ao sistema prisional para lá tratar da realidade da “cadeia” com trabalhadores e com as pessoas que cumprem suas penas; também tivemos o privilégio de contribuir com projetos como o fomento da leitura no cárcere e mais recentemente, da produção literária naquele lugar que muitas vezes ouvimos ser chamado de “escola do crime”.
Contudo, não apenas nestes grandes atos sua prática se destaca, mas talvez seja na postura cotidiana de verdadeiro humanista que encontramos o maior impacto da atuação do Dr. João Marcos. Suas decisões, constantemente tem se tornado referência para outros operadores do direito e foi neste contexto que o Supremo Tribunal Federal reconheceu nos argumentos dele a necessidade de promover uma grande revisão de nossas práticas no cárcere. A pena privativa de liberdade é aquela que retira do ser humano seu direito de ir e vir, em suma de ser livre. Ela é uma invenção da nossa sociedade moderna que visava “reabilitar ou ressocializar” a pessoa que cometeu algum delito. Seu uso, deveria se aplicar aos crimes mais graves e sua finalidade só pode ser vislumbrada em um contexto onde a segregação não seja um fim em si.
Todavia, na prática estamos vivendo no Brasil o que chamamos de ‘política do encarceramento em massa’ a partir da qual todas as pessoas que cometeram delitos, dos graves aos de menor potencial ofensivo, são igualmente isoladas em presídios e penitenciárias que pouco diferem de masmorras da Idade Média. A lei brasileira, ainda que antiga, prevê uma série de dispositivos para evitar tornar a prisão um local de vingança e abandono, prevendo seu uso como espaço estrategicamente educativo. Um destes dispositivos é a chamada progressão de regime, onde o Estado deve garantir aos apenados, um regime mais brando na medida em que ele cumpre seu tempo preso e apresenta bom comportamento. A primeira alternativa ao regime fechado, portanto, é o semiaberto.
Neste novo regime, devem ser garantidas oportunidades de trabalho, de educação e constantes contatos com a família para a restituição de vínculos sociais saudáveis. É nesta outra etapa da pena que a pessoa presa pode até mesmo estudar em uma faculdade ou curso técnico fora do espaço prisional e assim construir novas oportunidades para desenvolver sua vida. Na lei, no papel, assim está posto. Porém, recentemente o STF, com a adoção da Súmula Vinculante n. 56, acabou por reforçar as decisões justas e corretas do Dr. João Marcos nas quais ele concede prisão domiciliar para pessoas que têm o direito de cumprir pena em regime semiaberto, mas que permanecem indefinidamente no regime fechado.
Em nosso entendimento, mais do que atuar individualmente para evitar a violação de direitos promovida pelo Estado, a interpretação da lei nestes termos é também um ato político que nos impõe uma reflexão ética contra a prática do encarceramento em massa. Infelizmente, nem toda a sociedade está pronta para esta reflexão. O exemplo disso é a lamentável postura do Ministério Público de Santa Catarina que, talvez por desconhecimento da realidade prisional ou por conservadorismo, não consegue ver na omissão do Estado perante o respeito e a garantia dos direitos humanos da pessoa presa, uma violação tão grave do que aquela que em geral motiva a prisão.
Nós, do Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Braz, ou simplesmente CDH de Joinville, como entidade que há mais de três décadas denuncia a violação da dignidade da pessoa humana nas práticas do Estado, deixamos nesta manifestação pública registrado nosso apoio ao Dr. João Marcos Buch e aos vários outros defensores de direitos que espalhados pelo Brasil tomarão como exemplo e referência sua atuação.
A mudança de uma cultura excludente é gradativa, mas em um dado momento a soma de pequenas práticas promove saltos qualitativos que nos elevam a outros patamares. Nós acreditamos que o reconhecimento do STF é o sinal de que um destes saltos está para acontecer. E não podemos deixar que o conservadorismo e o preconceito nos impeçam de evoluir.
Colegiado do Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Braz
Joinville – SC, 14/07/2016.