O médico e o monstro
Fernanda Lange
Jornalista
Na ficção científica da escritora Mary Shelley, o médico Frankenstein cria um monstro e depois o abandona. E todos nós temos um pouco deste médico. A apresentação do ensaio monográfico que expus há dois anos, ao me formar no curso de jornalismo, tinha um pouco disso. Hoje retorno ao discurso, após uma bela experiência entre quatro paredes.
“Hoje o preso está contido. Amanhã ele estará contigo.” A frase, delineada com nuances de brincadeira e ameaça, firmeza e reflexão, ecoou nos ouvidos do público presente no “4º Seminário de Gestão Prisional, Segurança Pública e Cidadania”, realizado entre os dias 19 e 21 de maio em Joinville. Proferida pelo psicólogo Alvino de Sá, professor doutor da Faculdade de Direito da USP e integrante do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP-SP), a sentença constata uma simples, mas tão ignorada realidade.
O seminário de 2010, promovido pelo Centro de Direitos Humanos “Maria da Graça Braz”, Conselho Carcerário de Joinville e Pastoral Carcerária, contou com a retórica de ilustres palestrantes na esfera do direito e da saúde. Juízes, professores e psicólogos tinham como desafio informar ao público: números, fragilidades e possibilidades do sistema prisional brasileiro. Tarefa nada simples, mas muito bem articulada pelos profissionais.
Entre aparições do pensamento foucaultiano, debates sobre a descriminalização das drogas, mostras de vídeos inquietantes e relatos de experiências pessoais: muitos números – e eles assustam. Moramos no quarto país com a maior população carcerária do mundo (o Brasil só perde para EUA, China e Rússia). Temos 473 mil presos alojados em 292 mil vagas (220 mil tem menos de 30 anos de idade). Segundo André Luiz de Almeida e Cunha, diretor de Políticas Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional (Ministério da Justiça – DF), se o estado de São Paulo quisesse acompanhar a demanda de crescimento, teria que inaugurar a cada 45 dias uma penitenciária com 500 vagas. Aumenta o número de crimes entre as mulheres, relacionados especialmente ao tráfico de entorpecentes. O Brasil é o 2º país em desigualdade social (só perde para Serra Leoa na África). E se não bastasse: Santa Catarina é o único estado brasileiro sem defensoria pública.
Dostoiévski, também citado nas palestras, propõe em “Crime e Castigo” que “é possível julgar o grau de civilização de uma sociedade visitando suas prisões”. A falência, a ineficiência, os índices de reincidência deste sistema prisional que temos repetido com o passar dos séculos foram constantemente ressaltados. Os profissionais convidados para o evento foram categóricos ao afirmar que a sociedade insiste em querer do mesmo, mesmo que não esteja dando certo. “Estamos minimizando o conceito de justiça à prisão”, evidenciou Geder Rocha Gomes, promotor e presidente do CNPCP-BA, ao abordar a eficiência, em grande maioria dos casos, da inclusão de penas alternativas nas quais os criminosos recebem acompanhamento constante e que exibem pouquíssimos números de reincidência. “Cadeia não serve para o bem de ninguém, só corroi, só corrompe, só destroi”, afirmava Alvino de Sá.
É fato, a forma como a mídia trata o assunto reflete em grande parte da opinião pública. Enquanto a maioria das pessoas visualiza apenas os efeitos do problema _ o crime _ e se preocupa com a função punitiva do sistema penitenciário, arquitetando desta forma um sentimento de segurança puramente ilusório; uma minoria se interessa pelas possibilidades de reintegração social dos encarcerados. Esquecem que, na maioria das vezes, em breve eles estarão de volta ao nosso convívio. Como queremos que eles retornem?
Talvez quando a mídia olhar para esse problema com um pouco mais de responsabilidade e parar de alimentar o sentimento de vingança na população, possamos ter mais chances de realmente trilhar o caminho do desencarceramento _ pois, como bem diz Marcus V. de Oliveira, professor e psicólogo, mestre em Saúde Pública, doutor em Saúde Coletiva e integrante do Núcleo de Estudos pela Superação dos Manicômios: “o sistema prisional só serve para multiplicar a violência”.