Direitos Mínimos não garantidos
O professor Virgílio foi um dos palestrantes no “VI Seminário de Gestão Prisional, Segurança Pública e Cidadania” com a palestra de abertura, “Direitos Mínimos: por que não conseguimos garantir a dignidade da pessoa humana na prática?
CDH: Levando em consideração a situação atual do sistema prisional no Brasil, qual a maior urgência para iniciar o processo de humanização dentro dos presídios?
Prof. Virgílio: Já ultrapassamos, há muito, um ponto de “não retorno” nessa política nefasta de encarceramento total. A questão prisional não é um caso de polícia, é um caso de política pública. Se pudéssemos voltar no tempo, a 1982, teríamos que afastar de uma vez por todas a ideia maldita do “law and order” como solução para qualquer coisa.
O encarceramento total só pode ser levado em conta por aqueles que lucram com isso. Há um grupo grande de pessoas e empresas lucrando com a desgraça que é o aprisionamento de seres humanos pelo mundo afora. São os donos de empresas privadas de contenção de gente, os vendedores de alimentação (sempre superfaturada e de qualidade desprezível), de uniformes, de instrumentos de contenção (desde tonfas e algemas até aparelhos sofisticados de body scan), etc. Obviamente a sociedade quando pensa o cárcere como forma de controle é porque tudo o mais está perdido.
Se pudéssemos voltar ainda mais no tempo, ali pela segunda metade do século XVIII, época em que até a burguesia se dizia revolucionária, temos que a pena privativa de liberdade nasce para afastar as possibilidades de suplício físico que eram a temível e terrível antecâmara da morte sob tortura (esfacelamento das juntas, exposição na roda, a “morte natural para sempre” e outras receitas do “tudo penal”). As penas privativas de liberdade já foram um avanço. Hoje não passam de vendetta estatal, sórdida e injustificável, contra a crescente massa de sem-nada, inclusive sonhos, que lotam nossas cadeias, presídios e penitenciárias.
Humanizar o sistema é muito pouco. É preciso implodi-lo. É fundamental que tenhamos uma nova forma de punir que não seja o cárcere, seja no modelo “penalocêntrico”, seja no modelo “hospitalocêntrico” (o aprisionamento manicomial consegue ser muito pior do que o cárcere “comum).
Aliás, nos últimos 30 anos, que é o tempo que me dedico a pesquisar o aprisionamento, talvez a fala mais impactante tenha sido a do Ministro da Justiça José Eduardo Cardoso, quando disse que preferiria morrer a ter que cumprir pena privativa de liberdade no Brasil. Não consola, mas existem sistemas muito piores.
Entretanto concordo com o ministro da justiça, se fosse possível escolher entre a morte e ter que cumprir 30 anos de prisão (pena máxima que pode cumprir um sentenciado no país desde o Código Penal republicano de 1890) eu asseguro que grande parte desses sentenciados escolheria a via rápida de por fim aos suplícios e ao sofrimento inerentess ao cárcere.
O trágico é que somos quase 600 mil presos e presas hoje no Brasil (sem contarmos os adolescentes em conflito com a lei e os portadores de sofrimento mental encarcerados) e a discussão caminha na contramão: o nível de estupidez nos discursos sobre o tema, tanto no Congresso Nacional, quanto fora dele são de irritar o paciente Jó.
CDH: Existem alguns exemplos positivos que podem ser adotados em outros lugares do país?
P. V: Não vejo nenhum exemplo positivo. Muito se fala das Associações de Proteção e Amparo aos Condenados (APAC’s), mas não deixa de ser prisão. As ouvidorias estaduais são meros apêndices dos governos e não têm qualquer interesse em apurar as torturas e dos desmandos, apenas em defender os próprios cargos. Os Conselhos da Comunidade talvez fossem uma alternativa em uma verdadeira individualização da pena, mas encontram várias restrições nas próprias comunidades.
Penso que a organização de núcleos de amigos e familiares de pessoas em privação de liberdade em cada localidade que conte com uma cadeia pública, um presídio, uma penitenciária é uma tentativa de solução. Organizar a massa de parentes e amigos de presos é o que venho tentando contribuir nos últimos 10 anos, mas é um trabalho muito difícil e penoso.
Como disse: já ultrapassamos um ponto de não retorno. Penso que enquanto não tivermos um direito penal mínimo, utilizado como ultima ratio, o que não é nenhuma novidade, Cesare de Bonesana já pregava isso na segunda metade do século XVIII, não teremos nenhuma possibilidade de avanço.
É primordial que a sociedade entenda que um dia os presos sairão. Alguns, pelo menos, sairão. Vão cobrar o tempo perdido de quem?
Como dizia Rogério Sganzerla, o genial cineasta catarinense, em seu O bandido da luz vermelha: “E quem estiver de sapatos não sobra“.
As perspectivas são sombrias. Vivemos tempos muito sombrios. A única certeza que tenho é a de que não podemos desistir de resistir. Daqui a 200, 300 anos, se ainda houver este planeta, algum antropólogo vai se debruçar sobre esse período e espantado vai dizer: eles prendiam gente como se prende animais.
Tem gente que acha isso natural.