O Perfil da Violência Doméstica
Lar doce Lar, que para inúmeras mulheres não é tão doce assim. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), a violência doméstica é a maior causa de mortes ou deficiências em mulheres e meninas entre 16 e 44 anos (www.observatóriodegenero.gov.br).
Livrar-se da situação de violência perpassa por inúmeras barreiras. Começa pelo medo da morte, dependência econômica, segurança dos filhos somada à baixa autoestima e a culpa por quebrarem laços considerados sagrados em muitas religiões. Existe o suporte da Lei Maria da Penha, que entrou em vigor em 2006, mas, é preciso investir em políticas públicas de prevenção no combate à violência e uma atuação mais consistente e ativa da rede de atendimento às vítimas de violência.
De frente para esta realidade a Fundação Luterana de Diaconia realiza desde 2006 a criação de uma amostra interativa, “Nem Tão Doce Lar” – NTDL -, que consiste na reprodução de uma casa com sinais que denunciam a violência doméstica. Em Joinville, a realização deste projeto que acontece por várias cidades e estados brasileiros teve início na parceria com o Fórum da Mulher de Joinville e o Departamento de Diaconia da Igreja Luterana de Joinville.
Não é preciso muito tempo para identificar as vítimas de violência doméstica. Nos primeiros minutos dentro da casa, uma mulher, aparentando 45 anos, olhar sofrido e observador, corre por todo o ambiente. De repente, a necessidade de concordar e falar. “É, as coisas acontecem assim mesmo”, desabafa “Aparecida*”, dentre tantas outras “Aparecidas, e Marias, e Terezinhas”, porque parte da sua história se retrata na exposição.
A primeira observação foi a bíblia colocada em um pequeno altar com terços e uma pequena imagem de São José. A confusão dos elementos dispostos no altar é uma forma de reproduzir a confusão interior que a pessoa em situação de violência se encontra. Ao lado uma garrafa de vodka derrubada e vazia. “Este texto da bíblia que fala sobre submissão confunde muita gente, ele bebia e falava que eu não era uma mulher submissa”, lembra Aparecida com o olhar distante, como que imaginando o semblante do marido.
Mas a história de violência doméstica de Aparecida começou muito antes, na sua infância. “Eu era a filha do meio de seis irmãos”, relata. A mãe de Aparecida uma mulher rude e severa, surrava as filhas com fio de luz. Saía para trabalhar e deixava os afazeres da casa para as crianças. “Eu fazia tudo sozinha, percebia que meus irmãos não iriam fazer os trabalhos e para a gente não apanhar eu fazia”. Arrastando as mãos surradas pelo tempo, ela descreve como encerava o assoalho com o esfregão de ferro para ficar brilhoso.
Na casa – NTDL – o cinto, os fios de luz, pedaços de pau evidenciam o ato de surrar, de bater. As lembranças à tona os questionamentos também e reforçam a ideia de não naturalizar a atitude da violência. As marcas, o choro e a dor dos golpes são temporários, mas as lembranças e a construção humana que deriva da violência são pra vida toda.
Aos nove anos Aparecida sofreu várias tentativas de estupro, dentro da própria casa, um dos amigos dos irmãos a atormentava. “Quando eu chegava da escola ele já estava lá e eu tinha que viver fugindo”, conta espremendo os lábios. Com muita dificuldade Aparecida conseguia fugir. “Eu fui contar para minha mãe o que estava acontecendo e apanhei”, conta. Ninguém acreditava que um menino filho de uma família amiga pudesse ser um estuprador.
Depois de algum tempo o amigo do irmão não lhe importunava mais, no entanto, certo dia, quando Aparecida estava com 14 anos sua mãe pediu para que ela fosse pedir ao vizinho um martelo emprestado. O vizinho lhe chamou para entrar e lhe atendeu nu e a agarrou dentro da cozinha. Ela se debateu e aos gritos saiu correndo, contou para a mãe que a repreendeu novamente. “Minha mãe disse: você de novo com estas histórias menina, agarrou os meus cabelos e sacudiu”.
Diálogo não existia, o trauma sim. Aparecida passou sua adolescência com o coração cheio de temor e dor. “Eu tinha pavor de homem, não acreditava que pudesse haver amor dentro deles”, expõe. Mas, mesmo assim, para não fugir da “ordem natural das coisas”, ela resolveu se casar, aos 26 anos.
No início do casamento as coisas caminharam bem, porém, logo o vício da bebida e o ciúme descontrolado do marido começaram a deixar marcas. O coração de Aparecida que já sofria com as lembranças do passado parecia esmiuçar ao falar das coisas que seu companheiro fazia. “Eu não podia trabalhar fora, não podia sair de casa, não podia nem visitar minha mãe”, lembra. Ele nunca chegou a “bater forte” em Aparecida e por muitas vezes a violência psicológica era mais evidente. “Eu já estava com mania de limpeza, porque a única coisa que eu fazia era cuidar da casa e dos filhos”, ressalta Aparecida.
Os pratos quebrados e jogados dentro da NTDL descrevem um cenário de disputa, de imposição onde ganha quem é mais forte fisicamente. O barulho, a bagunça dos cacos quebrados é um retrato das vidas que estão submetidas a estas atitudes.
Umas das coisas que o marido de Aparecida fazia era drama de conto de fadas. Depois da casa toda limpa ele juntava pó de café, molhava e jogava pela casa. Às vezes estava bêbado, às vezes não. Aparecida não reagia, limpava tudo novamente, adoeceu, ficou sem forças. A partir da doença é que os olhos de Aparecida iam clareando, parou de ceder e sua meta era pensar nos filhos e nela mesma. “Eu não separei, mas comecei a observar as atitudes, minhas e dele”, explica.
A vida de Aparecida continua nos altos e baixos, mas ela quer mudar, quer falar e principalmente, sonha em sair da situação de vítima. Abandonar um casamento com filhos e tantas outras coisas envolvidas, não é fácil. “Precisamos é de suporte, apoio para saber por quais caminhos devemos percorrer para não ficar a mercê dos acontecimentos”, desabafa.
Mesmo convivendo com limitações e ainda se sujeitar a muitas atitudes do marido, Aparecida passa para seus filhos e filhas a importância de saber que a vida pode ser diferente. “Converso com meus filhos sobre tudo e procuro ser um ombro amigo”, conta Aparecida, com os olhos cheios de lágrimas, ternura e esperança.
E a esperança de Aparecida só pode ser saciada com a articulação forte e interdisciplinar dos vários meios de atendimento e identificação das vítimas de violência doméstica. Isto é possível por meio de um forte trabalho de formação, capacitação educação na mudança de cultura e comportamento que gere transformação dentro das casas e das escolas.
*Aparecida é um nome fictício para preservar a identidade da fonte
* O local da montagem da casa também não foi divulgado devido ao mesmo fim